sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Clarisse


Foi tudo minha culpa. Estávamos numa reunião de amigos e eu soltei:
“Gente, eu ando tão bloqueado, estou precisando fazer uma pesquisa em campo, pra ver se sai algo, e talvez assim eu consiga escrever direito. Estou precisando de um estimulo. Estou desesperadamente precisando visitar um IML, dar de cara com um cadáver. Aberto e estropiado pelo legista, pode ser morto de qualquer coisa, de desastre, de automóvel, de avião, pode ser estrangulamento, afogado, estupro, surra, facada, tiro, cortado em pedaços, queimado, mordido, comido, empanturrado, overdose, machadada, perfurações de espeto, de tesoura, veneno, ácido, sei lá de qualquer jeito. Se vocês presenciarem um crime, um acidente, uma ocasião em que de qualquer maneira depararem com um cadáver, isso mesmo, não é pra rir não, é serio, não chama a ambulância me chama primeiro pelo amor de Deus.”
Os amigos, claro, acharam graça, não pararam de rir:
“De onde você tirou ‘perfurações de espeto’?”
“E ‘machadada’ é trash, coisa de filme.”
“Não sei por que penso nessas coisas. Elas simplesmente aparecem.” Eu disse.
“Você tem preferência de sexo?”
“E cor?”
“Não ligo, desde que esteja bem morto e eu possa obter impressões que em ajudem com o trabalho.”
“Mas você é escritor, não pode imaginar tudo?”
“Sim, mas preciso ter a impressão do que já vi. É assim que eu sou.”
“Eu acho que posso ajudar”, disse Clarisse. Estava ali ao meu lado, olhos azuis e bolsa bonita.
“O que você está achando dessa festa?” Perguntou ela.
“A bebida está boa.”
“Quer ir para um outro lugar depois?”
“Sou gay.”
“Sou puta. Desculpe.”
“Está pedindo desculpa por ser puta?” Ri.
Ela riu também. Disse:
“Pela cantada. Tem gay que tem medo de mulher.”
“Não sou assim, sou escritor.”
“Sei, ouvi seu comentário. Você quer dizer que escritor não tem medo de mulher e gay sim?”
“Quis dizer que sou sensível e não covarde. É que às vezes não me identifico.”
“Não reconhecer a si próprio? Assim, não saber quando é um ou quando é outro?
“Sim.”
“Eu também", disse ela, "ás vezes eu fico assim.” Fez uns olhos tristes de repente, pensando em algo. “Acho que posso te ajudar.” Disse.
“Com o quê? A me identificar?”
“Tem um amigo meu que é legista, bonitão, prefere sempre trabalhar de madrugada, diz que é mais macabro, pela solidão, mas o sossego vale a pena, e ele aproveita o tempo para ler, ele adora ler, sabia?”
“Não.”
“Mas às vezes não é tão sossegado assim. Sempre tem uma surpresinha de madrugada” baixava a voz, “uns casos do tipo que você mencionou”, piscava os olhos azuis, “se eu falar com ele, garanto que ele topa e você aparece lá e vê ao vivo e a cores como você sempre quis.”
Me pede o número do telefone e continua:
“É para quando rolar um cadáver fresquinho, se você deixar, eu dou teu número e ele te liga. O nome dele é Jonas.”
Eu dei um cartão e disse:
“Pode me ligar a hora que for, que a morte não tem hora certa.”
“Pode deixar. Ele sabe.”
Foi aí que tudo começou. Decidi que seria ela minha primeira vitima. talvez a encontrasse pronta e aberta na mesa do amigo. Ou eu mesmo poderia bancar o legista com ela.
Quem sabe?